A hibernação e a hibridação

A hibernação e a hibridação

Descanso no conforto e a separação da relação.

Aqui no hemisfério norte temos casas confortáveis, pelo menos pela matéria em que são construídas, e onde podemos dormir confortavelmente descansados. A temperatura, os sons, as texturas ou a iluminação são reguláveis, minimizado e filtrando, para podermos estar e descansar o mais suavemente possível.

Há, no entanto, algo que me fascina, algo que acontecia naturalmente até meados do século XX, as sestas. Mas não qualquer sesta, as sestas ao ar livre, seja na cidade ou no campo, na floresta ou na praia.

Estas sestas fascinam-me exatamente porque nos recordam de um lugar de relaxamento e segurança que simplesmente perdemos. Todo o conforto de que estamos rodeados também nos separa, cortando-nos de todos os diálogos que estão constantemente acontecer à nossa volta, sejam as vozes das pedras ou do vento, das árvores ou dos bichos, das bactérias ou dos fungos, ou mesmo da chuva e do sol.

Esta capacidade natural e ancestral de simplesmente descansar e dormir a determinada hora do dia, onde quer que se esteja, é hoje em dia vista pela lente de uma sociedade que baseia o seu valor exclusivamente na produção, tornando-se algo muito negativo, uma letargia e preguiça que temos que espantar ativamente para nos mantermos válidos.

Ora o natural à vontade para relaxar o nosso sistema nervoso central e adormecer, ao ponto de passarmos a bolha onírica, toca em várias questões. Questões essas quase que proibidas no contexto cultural onde nos encontramos. Temos: o ser mamífero, o negligenciar do sono e o sentirmo-nos em casa.

Começamos então por ser mamífero. Digo muitas vezes as minhas filhas que nós os mamíferos, somos naturalmente preguiçosos. Claro que há pessoas mais ativas que outras, mas não é a isso que me refiro, pois, falo da nossa natureza mais intrínseca e fundamental, do complexo corpo de osso e carne que precisa inevitavelmente de se entregar ao chão, seja na morte, seja no sono (o sono é também chamado da pequena morte). Contudo, na cultura moderna ocidental, o dormir é para quem não tem nada para fazer e todos nós temos muito para fazer (e, se não tivermos começamos logo a sentir vergonha ou culpa). No entanto, para os mamíferos (e grande parte dos animais) dormir é essencial, fazendo mesmo parte das suas relações comunitárias mais íntimas (quem tem animais de estimação sabe do que falo), pois dormem em conjunto e não em isolamento.

O que nos leva a negligenciar o sono faz-nos negligenciar o mistério próprio da vida. O sono como supérfluo faz-nos negar os fios essenciais da nossa criatividade, da intuição e da relação profunda com o mistério das coisas.

Então negligenciar, ou seja, tirar agência e soberania ao sono é, na verdade, uma negligência de nós próprios!

Por último temos esta sensação de nos sentirmos em casa, de encontrarmos um espaço seguro e protegido para podermos relaxar e entregar-nos a esta breve hibernação que nos regenera profundamente. No entanto, se até os anos 50 do séc.XX se dormia encostado às fontes da Praça do Rossio de forma tão natural como a água que nelas corre, hoje em dia isso é totalmente impossível. O nosso “lugar-casa”, íntimo e seguro tem sido encolhido, ficando cada vez menor. É perigoso adormecer numa cidade, pois podemos ser roubados e não o devemos  fazer, certo?

É importante reencontrar este conforto fora do nosso espaço mais íntimo, resgatar estes lugares de refúgio onde podemos simplesmente fechar as pálpebras durante 5 minutos. É uma entrega, uma oferenda ao mundo.

Esta poética capacidade de dormirmos para lá das nossas paredes supostamente invioláveis, abre-nos a possibilidades de relação profunda. É bom relembrar as ilusões culturais de que a consciência ou a senciência apenas pertencem aos humanos, que somos os únicos observadores ou narradores de todo o ecossistema que se encontra à nossa volta. Será de facto uma enorme sobranceria antropocêntrica assim o acharmos. Os pássaros, as árvores, as pedras e os riachos também nos observam, também sentem a nossa presença e interagem connosco. Porém, não o fazem de forma verbal, mas sim de uma maneira ricamente sensorial.

Então ao dormir na natureza entregando-nos profundamente a estes espaços ricos de vida, sonhando com eles, dormindo envolvido neles, permite a rica hibridação profunda da nossa psique e corpo.

Durante o sono sejam 5 minutos ou 5 horas, não interagimos verbal ou racionalmente com o mundo, mas ficamos sensorialmente mergulhados no seu mistério e é aqui, nestas paisagens oníricas, de fronteiras imaginais, que estamos de igual para igual com todas as outras entidades, presenças e vidas que nos rodeiam e se relacionam connosco a todos os momentos das nossas vidas. Uma sesta pode ser generativa e relacional, abrindo canais profundos de criatividade e entrega. Que possamos render-nos à fértil hibridação dos diálogos não verbais que nos sustentam e envolvem, dormindo em ressonância e não em isolamento.