Perdemos muitos mundos.

Perdemos muitos mundos.

Vários povos indígenas de todo o mundo tem este ditado: “Perdemos muitos mundos”.

Já há algum tempo que estou sentada com esta frase potente. Primeiro, ardia como tudo, pois a sua textura é de tragédia, morte, e perda. Veio como um aviso ancestral da própria vida – uma lição do passado profundo, uma história cautelosa de desastre.

Aqui no Ocidente, vivemos imersos numa visão limitada da história e da realidade. As nossas histórias são sobre o herói conquistador – aquele que ganhou.
Reis e imperadores que viveram para campanhas militares, defendendo e atacando, conquistando e massacrando. Aproveitando a riqueza para si próprios, cortando a cabeça do inimigo, anexando as suas terras, proibindo os seus deuses e rituais.

Mantendo-nos na história do herói narcisista, aquele que mata e conquista por capricho, que vive por medo da diversidade e da própria vida, todos os lugares conquistados e subjugados tornam-se irrelevantes. Assim, os mundos nunca se perdem, apenas se anexam e se vencem. Há mesmo uma narrativa que vai ainda mais longe, onde estas conquistas, ecocídios e genocídios são para trazer a paz, para salvar os selvagens e os seus habitats. Para os educar, dando-lhes oportunidades no mundo moderno.

Nesta visão do mundo, os mundos não se perdem, apenas se normalizam no progresso sempre em expansão. Estas terras conquistadas estão apenas a cumprir a sua missão de servir a cultura de massa tecnológica.

Quando algo se perde, é para ser subjugado como um recurso, destruído ao encontro do seu destino de ajudar o modo de vida moderno.
O pluriverso da vida torna-se estreito, desmoronado, e simplista. Viemos a adorar o monólito, o mono-deus, como a única verdade possível.

Quando nos ligamos a este aviso intemporal, a primeira impressão dói. Ter de reconhecer que perdemos, de facto, muitos mundos. A sabedoria multifacetada foi esquecida. Muitas línguas foram proibidas, muitos deuses foram aniquilados, a terra foi negligenciada. As leis abstractas e verdades absolutas substituem o conhecimento contextual. Também nós perdemos muitos mundos.

A segunda impressão sacode-nos do adormecimento colectivo. Quando nos apercebemos que estamos quase a perder mais um mundo, desta vez à beira do precipício da extinção. Num mundo complexo, os problemas exigem respostas complexas, intergeracionais e multidimensionais. Mas, num colapso da diversidade durante milénios, perdemos possibilidades e capacidades de resposta. Esquecemo-nos da miríade de padrões de conhecimento contextual, do seu fluxo e dos seus ritmos. A singularidade de cada lugar em particular, na sua forma multivocal. A perda de muitos mundos é a perda da variedade e da diferença. Embora os sistemas (eco)-vivos dependam do contraste e da diferença para prosperar.

O terceiro passo, aquele que se segue ao choque inicial, é reconhecer um dos padrões finais da criação; muitos mundos foram e serão perdidos. Uma e outra vez, expandindo-se e contraindo-se, dobrando e desdobrando-se. O sempre mutante e exprimindo o pluriverso, criando e destruindo. Chamem-lhe as estações da criação, desde o nascimento até à morte.

Ligando-se a este grande padrão, com o seu próprio ritmo pulsante, somos capazes de sentir esperança nesta frase sagrada. Já perdemos muitos mundos antes.

Isto significa que as comunidades conseguiram sobreviver antes e regenerar os ecossistemas ao longo do tempo, criando as condições para que a vida voltasse a prosperar. As comunidades em cooperação transformam-se e adaptam-se, não tomando cada vez mais, mas compreendendo o seu lugar no sistema.

Esta frase cautelosa é um antigo e sagrado apelo à nossa responsabilidade como guardiões da vida, restaurando e recriando a nossa humilde posição na complexa teia da vida.

Gratidão pelos seus guardiões, que a ouçamos com o coração!

[Disclaimer: Todas as palavras e conceitos tecidos no meu trabalho nascem através da minha Vida, naturalmente tendenciosa, e sempre limitada percepção das coisas, não assumindo que carreguem qualquer verdade absoluta. Escrevo a partir de um contexto de baixa intensidade sobre o norte global, em profunda consciência e responsabilidade pelo ecocídio e genocídio continuado pela modernidade.]

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Por Sofia Batalha

Sou ‘designer’ por formação académica, professora por acaso, escritora por necessidade visceral e investigadora independente por curiosidade natural. Sou mamífera, autora, mãe, mulher e tecelã de perguntas. Desajeitada poetiza de prosas sem conhecimentos gramaticais. Peregrina entre paisagens interiores e exteriores, recordando práticas cósmico-ctónicas em presença radical, escuta activa, arte, êxtase e escrita
Autora de nove livros e editora da revista online e gratuita Vento e Água, podcast Re-membrar os Ossos e Conversas D'Além Mar.