A Serpente Vermelha

A Serpente Vermelha

 

Quando me dói a cabeça toco tambor. O seu ritmo dispersa a dor e faz-me voltar. Torna-me mais inteira. Acontece que me dói muitas vezes a cabeça, desde pequena que tenho crises de enxaquecas que me obrigam a recolher ao escuro.

O tambor com a sua vibração ajuda. 

Há uns tempos sonhei que, do meu tambor saía uma potente Serpente-Vermelha, cor de sangue, enorme e voluptuosa. As suas escamas iridiscentes em vermelhos, castanhos e ocre abriam caminho por entre a escuridão. O seu gigantesco corpo serpenteava de forma voraz pelo chão. Este tambor-portal é como a lâmpada do Aladino onde vive o génio, mas aqui vive a Serpente-Vermelha. Quando acordei desenhei-a no próprio tambor, marcando-o e reconhecendo a sua morada.

Hoje dói-me a cabeça, mas ainda não toquei tambor. Tenho-me sentido envolvida pela Serpente-Vermelha, sinto o seu abraço que tanto me aprisiona como me liberta. Sinto-a a contorcer-se debaixo dos meus pés, viva, contraindo e expandindo, revolvendo as entranhas da terra. Percebo o seu movimento arcaico e primevo, reconheço o medo deste chão vivo em movimento, que me pode morder ou engolir a qualquer momento. A grande Serpente-Vermelha sussurra e atrai-me, invade-me. Em toda a sua dureza selvagem ela guarda a Vida, sibilando e sonhando a nossa existência. A sua sabedoria é profunda e antiga e os seus ensinamentos duros, mas reais. Devora-nos num só trago a olhar-nos de forma penetrante. A partir das fronteiras do tempo e dos lugares mais recônditos, ela compromete-se em proteger a Vida. O seu colossal corpo sagrado tudo sente, traduzindo as mais ocultas intenções em texturas e vibrações. A grande Serpente-Vermelha acorda em nós a sagacidade crua do instinto. A sua presença pode ser sentida como cruel no seu perpétuo e inexorável movimento.

Há milénios houve a tentativa de degolar a grande Serpente-Vermelha, de esquecer a sua sabedoria essencial, reza a história que Apolo lhe cortou a cabeça e que foi, como Lilith, expulsa do jardim-do-paraiso. Mas, dos ocultos esconsos selvagens, ela renasce a cada momento e exige ser ouvida de novo. O seu pulsar original reclama presença e atenção. Ela recorda-nos a sabedoria abissal do chão bravio, da terra indomável, do solo primitivo, da ininterrupta alquimia de transformação entre a vida e a morte, dos fios que nos tecem e unem. A sagrada Serpente-Vermelha é o princípio e o fim do mistério da Vida, o seu poder atemporal está em nós a cada pulsar do coração, no sangue que nos percorre as veias. Sentes?