A Natureza não é Refúgio, mas Vida.

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A Natureza não é Refúgio, mas Vida.

Na romântica narrativa moderna-urbana, a natureza é muitas vezes uma fuga, um refúgio para escapar à intensidade da vida, dos horários, das responsabilidades e dos afazeres. É um lugar puro de acalmia e de restauração da energia e saúde, seja em caminhadas ou retiros que nos regeneram, psíquica e fisicamente, onde ficamos uma vez mais prontos para voltar ao bulício do dia a dia urbano.

Nesta idealização romântica a Natureza é domesticadamente selvagem, ou seja, orgânica e levemente espontânea, mas não demasiado perigosa ou exigente. Não queremos surpresas, afinal só precisamos de descansar, e o repouso exige tréguas, controle e segurança.

Para as mentes ocidentais recordo que está mais que confirmado desde há décadas que estar “na natureza” nos influencia regenerativamente, o corpo activa e relaxa, a psique entra em fluxo e liberta, os tecidos regeneram. Algo que todos os povos contextuais e indígenas nunca esqueceram.

Afinal, não somos natureza?

Não podemos esquecer que as lentes modernas são grossas e invisíveis, distorcendo a nossa visão, ainda mais quando acreditamos que a nossa perspectiva moderna/ocidental é excepcional e mais evoluída que todas as outras, fica difícil, se não mesmo impossível, dar espaço a que diferentes percepções se manifestem com a mesma dignidade: a imaginação, os sonhos, os sussurros das pedras, o cantar das árvores, as histórias vivas por todo lado. Ou seja, o diálogo animista, somático e não verbal.

Esta mente mecanicista leva-nos de armadilha em armadilha de dissociação, sem disso nos apercebermos. O ambiente natural não é inerte, neutro, cientifico ou lá longe, mas como diz Gordon White “carregado de pressupostos não examinados sobre a natureza da Natureza e a nossa separação da mesma.”

Olhemos então para a paisagem como corpo vivo, para a complexa ecologia que nos envolve como se fossem os nossos próprios ossos, carne e pele, desde a infinitude estrelar do cosmos até à profundidade microscópica e subterrânea. Ao voltarmos a fazer parte, nem que seja por segundos, percebemos que não estamos no centro, mas que fazemos parte. Pertencemos radicalmente a esta vasta ecologia cósmica. Somos e fazemos parte de uma complexa orquestra sem maestro com melodias em múltiplos ritmos e dimensões.

Quando assumimos a Natureza como apenas refúgio, estamos a separar-nos numa bolha de excepcionalismo, ignorando o corpo poroso e indo apenas dentro, exigindo e extraindo o resultado do relaxamento e da “paz de espírito”, ignorando uma vez mais o que os lugares, na sua fragilidade e potência precisam realmente. Silenciando o corpo em relação, no cuidar diário, na atenção e na escuta. Não é sobre nós, mas sobre a vida.

Calando os uivos das pedras, emudecendo as árvores, amordaçando o chão. Porque silenciamos tudo ao exigir refúgio e paz, num exílio individual e exclusivamente humano.

Esta é de facto uma enorme mutilação cultural, pois continuamos a achar que “ficaremos melhor” se tirarmos um bocadinho do nosso atribulado calendário semanal, para nos refugiarmos, conectarmos e estarmos na Natureza. O que quero dizer é que não é apenas uma questão de tempo individual, não é sequer uma questão de ir. É voltar. É biologia de corpo no lugar, experiência directa de pertença e de fazer parte da teia da Vida. A todo o momento a acontecer, a desdobrar-se dinamicamente. 

Esta relação e diálogo antigo não é sobre o nosso bem-estar individual, pois na grande ecologia cósmica a que pertencemos eu e tu não significamos nada mais nem menos que uma larva, uma galáxia, uma pedra ou uma nuvem. E isso não nos retira valor, muito pelo contrário, entrega-nos de volta à Vida.

O paradoxo poético é que a natureza em nós em ressonância directa com os lugares ecologicamente vivos e diversos nos traz realmente a esse lugar de paz e regeneração, mesmo que as nossas premissas sejam extractivistas, antropocêntricas ou exclusivamente egocêntricas. Mesmo confundindo direitos e responsabilidades. Mas se continuarmos a ignorar e silenciar a nossa responsabilidade de cuidar destes mesmo lugares, se não devolvermos o fluxo de regeneração, eles vão-se extinguindo, consumidos e arruinados, sem possibilidade de nos amparar e nutrir. Consumimos e tragamos a rede da Vida de tão alienados que estamos à procura de paz.

Então antes de esperar que o teu refúgio te dê paz, ouve-o, sente-o. Como podes retribuir?

 

[Disclaimer: Todas as palavras e conceitos tecidos no meu trabalho nascem através da minha Vida, naturalmente tendenciosa, e sempre limitada percepção das coisas, não assumindo que carreguem qualquer verdade absoluta. Escrevo a partir de um contexto de baixa intensidade sobre o norte global, em profunda consciência e responsabilidade pelo ecocídio e genocídio continuado pela modernidade.]

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Por Sofia Batalha

Sou ‘designer’ por formação académica, professora por acaso, escritora por necessidade visceral e investigadora independente por curiosidade natural. Sou mamífera, autora, mãe, mulher e tecelã de perguntas. Desajeitada poetiza de prosas sem conhecimentos gramaticais. Peregrina entre paisagens interiores e exteriores, recordando práticas cósmico-ctónicas em presença radical, escuta activa, arte, êxtase e escrita
Autora de nove livros e editora da revista online e gratuita Vento e Água, podcast Re-membrar os Ossos e Conversas D'Além Mar.