A “cara de paisagem”

A “cara de paisagem”

Estar com “cara de paisagem” é uma expressão relativamente comum que se refere a ficar extremamente pensativo, com olhar perdido e abstraído nalguma preocupação ou pensamento “não construtivo” ou inútil. Também pode significar fazer de conta que nada aconteceu, fazer de conta que não é connosco, que não participamos nem fizemos nada. Estar com “cara de paisagem” relaciona-se com o não saber ou não se envolver no que acontece, como se se estivesse perdido na história, afastando a relação, intimidade ou envolvimento com o que esteja a acontecer. É uma expressão que revela um escudo de separação entre nós e o contexto.

Na verdade, revela muito mais que isso, pois expressa o profundo corte (cultural) com os nossos lugares e paisagens.

duas trágicas pressuposições que fazem parte desta aparente inocente expressão:

  1. Que uma paisagem é algo que não se consegue ler, é abstracta, separada e “lá fora”.
  2. Que ao adoptarmos uma “expressão de paisagem” ficamos em modo cenário inerte e imperscrutável.

Esta ideia cultural de que uma paisagem é inerte e ilegível é antropocêntrica e extremamente limitada relativamente à real e ancestral relação íntima dos seres humanos com os seus lugares.

Para as populações vinculadas e que pertencem aos lugares que habitam, uma paisagem nunca é abstracta. O que há de mais real e concreto que um complexo sistema vivo que nos sustenta e nutre a cada dia, todos os dias?

Uma paisagem é uma simbiose viva em reciprocidade profunda entre inúmeros sistemas abertos, que nos dá água para beber, ar para respirar, alimento, medicamento, mitos, memórias e sabedoria. Neste rico legado ancestral toda a paisagem é viva e plena de significados imanentes. O mito perigoso da separação entre os humanos (mentais) e a natureza não é real e nem sequer possível. O corpo habita sempre a paisagem e vice-versa, numa complexidade viva que permite a própria vida em todas as suas cambiantes. Mas o exílio da cultura moderna induz-nos a pensar o contrário.

A expressão “cara de paisagem” é violentíssima, pois fala da nossa orfandade enquanto cultura, de termos sido expulsos do paraíso e vivermos agora com migalhas de significados longínquos e abstractos, quando a abundância está já aqui: na topografia, nas pedras, nos padrões meteorológicos, nas plantas que crescem à nossa volta e animais que aqui habitam.

A expressão “cara de paisagem” é produto directo do empobrecimento e limitação da nossa capacidade de relação com os “outros” não humanos, um sintoma do catastrófico definhar da nossa sabedoria e inteligência sensorial múltipla, um indício da profunda negligência cultural em participar regenerativamente no diálogo da teia da vida.